terça-feira, 24 de setembro de 2013

Minhas 127 Horas (Parte 2)

Parte 1 aqui.
Lá estava eu. Preso em casa, com o rosto inchado. Recomendações do dentista.
Quando se está enclausurado em algum lugar, muitas vezes é a nossa chance de conhecê-lo melhor. Já me ensinaram uma vez que você nunca conhece um lugar totalmente. Sempre há uma mancha no chão, um arranhão na geladeira, alguma coisa que você não sabe de onde veio. E assim eu perambulei pela casa onde morava há seis anos, perdido.
Era fim de tarde, na quarta-feira, a primeira vez que saí na varanda, com o rosto ainda inchado. Um pouco abaixo na rua, a filha da minha vizinha varria a calçada. A mulher de uns trinta e poucos me olhou por uns segundos, acenou, e eu evitei virar o rosto pra não assustá-la. Ela provavelmente ficaria preocupada, me perguntaria o que tinha acontecido, e eu teria que explicar pra ela o que já tinha explicado para o dentista. Eu achava melhor que fosse assim. As coisas que eu digo e que eu faço devem sempre devem ter mais importância do que aquilo com que eu me pareço.
O rapaz, que havia feito seus vinte e seis anos há apenas alguns dias, queria voltar ao mundo, queria experimentar a vida. O quasimodo, sentado na varanda, queria viajar pelas praças de Paris.
Nesse momento uma vassoura vai ao chão, e a moça que antes varria a rua entra correndo na casa.
Nesse momento o quasimodo esqueceu de seu pequeno defeito, e como nunca tinha acontecido antes, se preocupava com o que tinha acontecido.
Ele deixa o conforto de sua varanda e entra na casa ao lado pela primeira vez.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A Barca



Estou sumido, eu sei. Trataremos disso depois. Enquanto isso, segue um trechinho de "A Barca", meu não-tão-novo projeto. Aproveitem:

"De volta ao seu apartamento, Layla começa a fazer as malas. Hora de deixar o vestido azul de lado e usar algo que realmente achava confortável: camisa de malha, um casaco leve, calças jeans e tênis. Enquanto o elevador cobre os cinco andares, de volta ao térreo, Layla tentava novamente se localizar: estava viajando para São Paulo, para uma base da FAB, porque um rapaz que não via há muito tempo precisava da sua ajuda.
Ela olha de relance o chuveiro, talvez tomasse um banho quando chegasse lá. Agora não havia tempo. Mochila nos ombros, porta afora, e de volta aos homens que a esperavam na calçada, do lado de fora.
William abre a porta do carro para Layla, que encontra seu conforto no banco de trás, e ele se senta ao lado dela. O motorista, militar, segue a caminho do aeroporto de Confins.
– Enquanto a gente te esperava, um amigo seu passou em frente ao seu apartamento e reconheceu a gente, da festa de ontem. Um tal de Henrique. Perguntou por você.
– E o que você disse?
– Que você ia viajar por uns dias. Legal você ter um amigo gay.
– Ele não é gay.
– Ah, fala sério.
– É sério, a gente conversou na festa ontem...
– Quem apresentou vocês?
– O tio dele. – e depois de pensar um pouco, – Ah, entendi...
– Não se preocupe, eu só deduzi por causa do puddle com o qual ele estava passeando. Ele sabia o nome do cachorro.
O oficial havia percebido, àquela altura, que William Lourenço não era uma pessoa normal. Diante da liberdade que o rapaz apresentava, resolve afrouxar um pouco a sua farda e ter uma conversa menos formal com seus passageiros:
– Já reparou que quase toda mulher tem um amigo homossexual?
– Claro. É o melhor tipo de amigo pra uma mulher. Quer dizer, considere as outras opções: com um amigo hetero, ela nunca sabe quando ele vai estragar tudo dizendo que a ama, ou a namorada histérica dele vai começar a relacionar o tempo que eles passam juntos com o fato dela ser um animal de fazenda. Com amiga mulher, ou a amiga é mais bonita, onde o problema é óbvio, ou é mais feia, onde o risco de vê-la reclamar da vida e fazer beicinho é grande, sem contar o fato de que a amizade feminina é competitiva por natureza. Gays não têm esse problema, eles pensam como uma mulher, eles entendem de moda, e na balada eles podem até querer o mesmo que a menina, mas não há a competição direta. Ela quer heteros, ele, gays. O mundo deles é mais simples que o nosso.
Layla apenas sorri, desviando o olhar para o mundo lá fora, e se lembrando de que essa era a magia de William Lourenço, o rapaz capaz de analisar o mundo ao seu redor.
Alguns minutos depois, sob uma brisa leve, eles pegam o avião para São Paulo."